quinta-feira, março 29, 2007

O amor

Quando tudo se acalma no silêncio, eu volto
à beira deste berço em que meu filho dorme
com os olhos tão fechados que quase não poderia
penetrar no seu sono a moeda de um anjo.

Deixados ao abrigo da sua ternura surgem
pela colcha em desordem,muito perto das mãos,
os brinquedos que teve todo o dia consigo,
ensaiando um afecto a que já sou estranha.

Quem a mim esteve unido qual carne em minha carne,
um pouco mais se afasta cada instante que vive;
mas essa é minha mágoa e meu júbilo simultâneos,
porque se fecha o círculo e o caminho ao amor.

Maria Victória Atencia

terça-feira, março 27, 2007

Letra para um solo de Charlie Parker

Como estranha ave de presa
que ferida de morte flectisse
a hipérbole do voo na agonia
prolongada, é um canto angular,
terso, de arestas poluídas.
Polígono torturado, perturba-o
a iminência adiada de um grito
de socorro.Em sua chama viva
perpassam secretas vozes de rebeldia,
bárbaros sons de tormenta.No clamoroso
incêndio da ira e da raiva
(é preciso saber escutar),
a urgência implorativa
de um pouco de ternura.


Rui Knopfli

segunda-feira, março 19, 2007

Síndroma da planície


Conheci, numa aldeia esquecida do concelho de Mértola, uma mulher de noventa anos, muito magra e pequena, tisnada por anos de ceifas, vestida de preto. Tivera muitos filhos e os que sobreviveram já não viviam ali, havia muito tempo.
Estive com ela uma única vez. gordas e de ar estupidamente feliz.
Lamentou, sem grande convicção, as suas ausências prolongadas, as raras visitas que lhe faziam. Imaginei que o dizia quase por dever. Os pais devem amar os filhos; os avós, os netos. Devem desejar as suas presenças e por aí fora, sempre assim se ouviu dizer e poderia parecer-me mal que ela não mo dissesse.
Contou-me ainda algumas coisas do seu passado: o marido fora sapateiro e batia-lhe quando bebia. Disse-me ainda que ele bebia do nascer ao pôr-do-sol. Tirando isso, tinha sido muito seu amigo e sentira muito a sua falta quando ele morrera.
Passados dois anos deste encontro, soube que numa tarde de canícula, foi encontrada enforcada com a corda da roupa, na árvore do quintal.
Fez-me tanta impressão imaginar o pobre corpo, ressequido e triste a baloiçar, sem vida, num ramo da árvore.
Imagino um jovem apaixonado que não é correspondido e
Convidou-me para entrar em sua casa, onde vivia sozinha e mostrou-me as fotografias dos filhos, noras, genros, netos, num desfiar de pessoas sorridentes, que, cego pela paixão, escreve um bilhete e se mata com um tiro certeiro.
Imagino a mulher, tão velha, a desatar a corda presa à parede caiada do quintal, a subir a um banco, a fazer o laço, a colocá-lo à volta do pescoço e, sem precisar de ganhar coragem, deixar-se pender até à morte.
Imagino a vertigem dos rostos sorridentes das fotografias a passarem, velozes, na sua cabeça; o riso sarcástico do sapateiro que já não lhe pode bater porque morreu e morto, já não bebe. Imagino que sentiu pela última vez, o formigueiro do trigo a picar-lhe as mãos, os pés, a cabeça, o corpo todo, o sol a queimar-lhe o corpo todo, pela última vez.

i
19 de Julho de 2005

domingo, março 18, 2007

Escrito num livro abandonado em viagem

Venho dos lados de Beja.
Vou para o meio de Lisboa.
Não trago nada e não acharei nada.
Tenho o cansaço antecipado do que não acharei,
E a saudade que sinto não é no passado nem no futuro.
Deixo escrita neste livro a imagem do meu desígnio morto:
Fui, como ervas, e não me arrancaram.

Álvaro de Campos

terça-feira, março 13, 2007

Este ofício de poeta

(...)Por exemplo, se tiver que definir poesia e me sentir um tanto inseguro para o fazer, se não tiver bem a certeza, digo qualquer coisa como:«A poesia é a expressão do belo por meio de palavras artisticamente entretecidas».Esta definição pode servir para um dicionário ou para um manual, mas todos sentimos que é um tanto débil.Há uma coisa muito mais importante-uma coisa que pode estimular-nos a continuar não só a tentar escrever poesia como a tirar dela prazer e a sentir que sabemos tudo sobre ela.
E isso é sabermos o que é a poesia.Conhecemo-la tão bem que não sabemos defini-la por outras palavras, assim como não sabemos definir o sabor do café, a cor vermelha ou amarela ou o significado da ira, do amor, do ódio, do nascer ou do pôr do sol, ou do nosso amor à pátria.Estas coisas estão tão fundas em nós que só podem exprimir-se mediante esses simbolos vulgares que partilhamos.Assim, porque precisamos de outras palavras?
Jorge Luis Borges

segunda-feira, março 12, 2007

Nocturno mar

Ni tu silencio duro cristal de dura roca,
ni el frío de la mano que me tiendes,
ni tus palabras secas, sin tiempo ni color,
ni mi nombre, ni siquiera mi nombre
que dictas como cifra desnuda de sentido;

ni la herida profunda, ni la sangre
que mana de sus labios, palpitante,
ni la distancia cada vez más fría
sábana nieve de hospital invierno
tendida entre los dos como la duda;

nada, nada podrá ser más amargo
que el mar que llevo dentro, solo y ciego,
el mar, antiguo edipo que me recorre a tientas
desde todos los siglos,
cuando mi sangre aún no era mi sangre,
cuando mi piel crecía en la piel de otro cuerpo,
cuando alguien respiraba por mí que aún no nacía.

El mar que sube mudo hasta mis labios,
el mar que me satura
con el mortal veneno que no mata
pues prolonga la vida y duele más que el dolor.
El mar que hace un trabajo lento y lento
forjando en la caverna de mi pecho
el puño airado de mi corazón.

Mar sin viento ni cielo,
sin olas, desolado,
nocturno mar sin espuma en los labios,
nocturno mar sin cólera, conforme
con lamer las paredes que lo mantienen preso
y esclavo que no rompe sus riberas
y ciego que no busca la luz que le robaron
y amante que no quiere sino su desamor.

Mar que arrastra despojos silenciosos,
olvidos olvidados y deseos,
sílabas de recuerdos y rencores,
ahogados sueños de recién nacidos,
perfiles y perfumes mutilados,
fibras de luz y náufragos cabellos.

Nocturno mar amargo
que circula en estrechos corredores
de corales arterias y raíces
y venas y medusas capilares.

Mar que teje en la sombra su tejido flotante,
con azules agujas ensartadas
con hilos nervios y tensos cordones.

Nocturno mar amargo
que humedece mi lengua con su lenta saliva,
que hace crecer mis uñas con la fuerza
de su marca oscura.

Mi oreja sigue su rumor secreto,
oigo crecer sus rocas y sus plantas
que alargan más y más sus labios dedos.

Lo llevo en mí como un remordimiento,
pecado ajeno y sueño misterioso
y lo arrullo y lo duermo
y lo escondo y lo cuido y le guardo el secreto.


Xavier Villaurrutia

Voar no Tempo


Hoje acordei e fui ao Alentejo. Que paz.
Tudo tão branco, tanto sol, tanto calor à uma e meia da tarde.
A vida derretia-se, quente, quente.
Ninguém. Nas ruas, só renques de casas de rés-do-chão, caiadas na Páscoa, barra azul a impedir a entrada aos maus espíritos. O diabo que os carregue.
O diabo que carregue as coisas más, que carregue para longe esta tristeza infinita, os medos, as incertezas.
Corre diabo, corre, corre! Esconjuro-te! Vai, vai. Vai para o monte do enforcado e enforca os meus males na oliveira secular, de tronco oco, torcido, torturado.
Passei a tarde, livre, a tarde e eu, no terraço, no alto de S. Gens.
Começou a soprar vento forte. Ai que bom, o vento na cara, no cabelo, no corpo todo, que prazer!
Que prazer: ver o vento trazer a chuva, arrastar a trovoada; estar ali, e sentir o vento.
Asas.
Quero asas para voar sobre as cores da Terra a perder de vista.
As cores da terra liquefizeram-se, de repente, sob a chuva. Quente e grossa, embebeu os barros, deixando-os lamacentos e brilhantes.
Cinco da tarde, 230 quilómetros até Lisboa, começava a trabalhar às 19h30m.
Mozart alto para não conseguir ouvir mais nada, para me atordoar, não pensar.
É preciso não pensar. Só ver, só ouvir. Só ver a estrada, só ver a cor alentejo-chumbo-brilhante, só cheirar a terra molhada e ouvir Mozart cantado em alemão.
E não pensar, só lembrar. Eu ainda sou a mulher jovem que viveu no Alentejo. Que ali pariu dois filhos e plantou árvores, flores, arbustos. Que nadava nos pegos e deixava as cobras-dágua enrolarem-se às pernas, nas tardes cálidas . Que tinha cães no Alentejo: a Caniche Gigante e os seus dois cachorrinhos, o Serra da Estrela, a Cocker Spaniel que abandonaram na estrada e veio ter à minha porta, e a Rafeira sem dono que amei tanto.
Eu sou a que, no Alentejo, brincava com os filhos e com a terra fazendo corridas sob a chuva quente de Maio e aterrando nas poças de lama. E no Outono, juntos, estalavamos folhas de plátano secas sob os pés e íamos espreitar as romãzeiras atrás da casa e roubar os medronhos maduros.

Eu sou a que vai ao Alentejo visitar-me.

i
1 de Junho de 2005


quinta-feira, março 08, 2007

Lo fatal

A René Pérez.

Dichoso el árbol que es apenas sensitivo,
y más la piedra dura, porque ésta ya no siente,
pues no hay dolor más grande que el dolor de ser vivo,
ni mayor pesadumbre que la vida consciente.

Ser, y no saber nada, y ser sin rumbo cierto,
y el temor de haber sido y un futuro terror...
Y el espanto seguro de estar mañana muerto,
y sufrir por la vida y por la sombra y por

lo que no conocemos y apenas sospechamos,
y la carne que tienta con sus frescos racimos
y la tumba que aguarda con sus fúnebres ramos,
¡y no saber adónde vamos,
ni de dónde venimos...!

Rubén Dario

terça-feira, março 06, 2007

Nivel del mar

Un hombre frente al mar

Es como yo: lo siento con mi angustia y mi sangre.
Hermoso de tristeza, va al encuentro del mar,
para que el Sol y el Viento le oreen la agonía.
Paz en la frente quieta; el corazón, en ruinas;
quiere vivir aún para morir más tiempo.

Es como yo: lo veo con mis ojos perdidos;
también busca el amparo de la noche marina;
también lleva la rota parábola de un vuelo
sobre el anciano corazón.

Va, como yo, vestido de soledad nocturna.
Tendidas las dos manos hacia el rumor oceánico,
está pidiendo al tiempo del mar que lo liberte
de ese golpe de olas sin tregua que sacude
su anciano corazón, lleno de sombras.

Es como yo: lo siento como si fuera mía
su estampa, modelada por el furor eterno
de su mar interior.
Hermoso de tristeza,
está tratando -en vano- de no quemar la arena
con el ácido amargo de sus lágrimas.

Es como yo: lo siento como si fuera mío,
su anciano corazón, lleno de sombras...
Es como yo: lo siento con mi angustia y mi sangre.
Hermoso de tristeza, va al encuentro del mar,
para que el Sol y el Viento le oreen la agonía.
Paz en la frente quieta; el corazón, en ruinas;
quiere vivir aún para morir más tiempo.

Es como yo: lo veo con mis ojos perdidos;
también busca el amparo de la noche marina;
también lleva la rota parábola de un vuelo
sobre el anciano corazón.

Va, como yo, vestido de soledad nocturna.
Tendidas las dos manos hacia el rumor oceánico,
está pidiendo al tiempo del mar que lo liberte
de ese golpe de olas sin tregua que sacude
su anciano corazón, lleno de sombras.

Es como yo: lo siento como si fuera mía
su estampa, modelada por el furor eterno
de su mar interior.
Hermoso de tristeza,
está tratando -en vano- de no quemar la arena
con el ácido amargo de sus lágrimas.

Es como yo: lo siento como si fuera mío,
su anciano corazón, lleno de sombras...

Hérib Campos Cervera

Dejeuner sur un gratte-ciel



O autor e eu temos alguns pontos em comum: ambos somos anónimos e pensamos que o pequeno almoço é uma refeição muito singular , óptima para ser tomada no plural, olhando a cidade do alto , alcandorados num lugar onde o barulho não chegue, a poluição não pese demasiado, as núvens estejam imediatamente por cima de nós, enfim, e outras coisas das quais não me lembro agora mas que devem ser igualmente importantes. Porque hoje estou assim: só me apetece dizer coisas sem nexo. Às grandes depressões seguem-se períodos de euforia .O equilíbrio tarda. Quase invejo (ai, um pecado!) as pessoas felizes, apesar de saber que são estúpidas. A estupidez será um dom de um Deus?Não me conformo: gastei um dinheirão na lobotomia , mas azar...devem ter-me retirado o lado errado do cérebro.
i
8 de junho de 2006

sexta-feira, março 02, 2007

(?)

Esta velha angústia,
Esta angústia que trago há séculos em mim,
Transbordou da vasilha,
Em lágrimas, em grandes imaginações,
Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,
Em grandes emoções subitas sem sentido nenhum.

Transbordou.
Mal sei como conduzir-me na vida
Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!
Se ao menos endoidecesse deveras!
Mas não: é este estar entre,
Este quase,
Este poder ser que...,
Isto.

Um internado num manicómio é, ao menos, alguém,
Eu sou um internado num manicómio sem manicómio.
Estou doido a frio,
Estou lúcido e louco,
Estou alheio a tudo e igual a todos:
Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura
Porque não são sonhos
Estou assim...

Pobre velha casa da minha infância perdida!
Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!
Que é do teu menino? está maluco.
Que é de quem dormia sossegado sob o teu tecto provinciano?
Está maluco.
Quem de quem fui? Está maluco.Hoje é quem eu sou.

Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer!
Por exemplo, por aquele manipanso
Que havia em casa, lá nessa, trazido de África.
Era feiíssimo, era grotesco,
Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê.
Se eu pudesse crer num manipanso qualquer-
Jupiter, Jeová, a Humanidade-
Qualquer serviria,
Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?

Estala, coração de vidro pintado!


Fernando Pessoa
(Álvaro de Campos)

quinta-feira, março 01, 2007

Luí

on-line hits.