segunda-feira, março 19, 2007

Síndroma da planície


Conheci, numa aldeia esquecida do concelho de Mértola, uma mulher de noventa anos, muito magra e pequena, tisnada por anos de ceifas, vestida de preto. Tivera muitos filhos e os que sobreviveram já não viviam ali, havia muito tempo.
Estive com ela uma única vez. gordas e de ar estupidamente feliz.
Lamentou, sem grande convicção, as suas ausências prolongadas, as raras visitas que lhe faziam. Imaginei que o dizia quase por dever. Os pais devem amar os filhos; os avós, os netos. Devem desejar as suas presenças e por aí fora, sempre assim se ouviu dizer e poderia parecer-me mal que ela não mo dissesse.
Contou-me ainda algumas coisas do seu passado: o marido fora sapateiro e batia-lhe quando bebia. Disse-me ainda que ele bebia do nascer ao pôr-do-sol. Tirando isso, tinha sido muito seu amigo e sentira muito a sua falta quando ele morrera.
Passados dois anos deste encontro, soube que numa tarde de canícula, foi encontrada enforcada com a corda da roupa, na árvore do quintal.
Fez-me tanta impressão imaginar o pobre corpo, ressequido e triste a baloiçar, sem vida, num ramo da árvore.
Imagino um jovem apaixonado que não é correspondido e
Convidou-me para entrar em sua casa, onde vivia sozinha e mostrou-me as fotografias dos filhos, noras, genros, netos, num desfiar de pessoas sorridentes, que, cego pela paixão, escreve um bilhete e se mata com um tiro certeiro.
Imagino a mulher, tão velha, a desatar a corda presa à parede caiada do quintal, a subir a um banco, a fazer o laço, a colocá-lo à volta do pescoço e, sem precisar de ganhar coragem, deixar-se pender até à morte.
Imagino a vertigem dos rostos sorridentes das fotografias a passarem, velozes, na sua cabeça; o riso sarcástico do sapateiro que já não lhe pode bater porque morreu e morto, já não bebe. Imagino que sentiu pela última vez, o formigueiro do trigo a picar-lhe as mãos, os pés, a cabeça, o corpo todo, o sol a queimar-lhe o corpo todo, pela última vez.

i
19 de Julho de 2005

1 Comments:

Blogger Daniel Aladiah said...

Aos 92 o suicídio? Para quê apressar a morte se não se apressou na vida? Por falta de apreço? Quem a poderia apreçar? Apressou-se ela...
Um beijo
Daniel

25 março, 2007  

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