sexta-feira, dezembro 14, 2007

Livre do Desassossego

Mais umas horas em nossa companhia e do mar
no Guincho
junto ao mar há menos poluição
a água espalha oxigénio no ar quando as ondas rebentam
como se as ondas carregassem ampolas de vidro muito fino
com oxigénio lá dentro
estou a escrever disparates eu sei
mas hoje foi dia de disparates
e de sol
começamos por apanhar sol
li fumaste falámos (de quê?)
disseste algo que tinha a ver com a perfeição
atingirmos a perfeição ou qualquer coisa do género
sermos melhores amarmos melhor entregarmo-nos plenamente a alguém
e eu perguntei para quê
de que serve sermos melhores amarmos e entregarmo-nos a alguém
tu sabes deves saber mas eu não e por isso tudo me parece inutil
desde que viemos de la que tudo me parece inutil
e ja antes de irmos tudo me parecia inutil
mesmo assim ainda comprei uns calções brancos e um livro chamado
o maravilhoso numero pi
comecei a ler-to no teu carro mas estava descapotável
e com o vento a velocidade e a musica não ouviste nada
mesmo assim sorriste
tens um sorriso tão lindo deve ser por ser triste
mas apesar de triste é um sorriso que ainda acredita
e contaste-me do chocolate
das mensagens que leste no telemovel dele
e eu recontei-te das que li no telemovel dele

Ajudavas-me a traduzir a Koskivaara quando eles chegaram
lindos lindos um par disseste tu e eu concordei
mas depois olhámos melhor e eles olharam-nos
e nós olhávamos eles olharam-nos melhor
e eles olhavam-nos e fingiam conversar
e nós fingiamos conversar eles também
rimos num quarteto em ri
"é muito interessante" "you too"e viemos embora
só assim nem merecia ser contado
mas pensando melhor foi o choque estético do dia

(achas que nós fomos o deles?)

há perguntas que são maus sinais
nunca antes eu te perguntaria uma coisa dessas
era no tempo em que tinhamos certezas

i
21 de Maio, 2005

quarta-feira, dezembro 12, 2007

Um velho em Veneza

Em Veneza, velho e envelhecido, quase mudo,
rodeado de livros, de solidão, de gatos,
o poeta Ezra Pound,
falou, num breve, muito breve encontro, com Grazia Livi.
Comentou-lhe, sem autocompaixão e sem desprezo,
secamente, com voz entrecortada:
«No fim penso que não sei nada.
Não tenho nada para dizer, nada.»
Se depois de tão alto exemplo, de tão clara sentença,
ainda continuo a escrever e risco palavras no fumo,
não é, que a morte me livre,
por bastardo interesse ou absurda vaidade,
mas apenas por uma simples razão,
porque não conheço outro meio, a não ser o suicídio
- desnecessário é um poema como um cadáver -,
para dar testemunho de nada a ninguém,
do mundo que contemplo, desta vida,
do seu horror gasto e quotidiano.
Que o velho Pound, na sua cova,
me perdoe por ligar o seu nome
a estas sórdidas palavras desesperadas

Juan Luis Panero

sexta-feira, dezembro 07, 2007

Song of Childhood

When the child was a child
It walked with its arms swinging,
wanted the brook to be a river,
the river to be a torrent,
and this puddle to be the sea.

When the child was a child,
it didn’t know that it was a child,
everything was soulful,
and all souls were one.

When the child was a child,
it had no opinion about anything,
had no habits,
it often sat cross-legged,
took off running,
had a cowlick in its hair,
and made no faces when photographed.

When the child was a child,
It was the time for these questions:
Why am I me, and why not you?
Why am I here, and why not there?
When did time begin, and where does space end?
Is life under the sun not just a dream?
Is what I see and hear and smell
not just an illusion of a world before the world?
Given the facts of evil and people.
does evil really exist?
How can it be that I, who I am,
didn’t exist before I came to be,
and that, someday, I, who I am,
will no longer be who I am?

When the child was a child,
It choked on spinach, on peas, on rice pudding,
and on steamed cauliflower,
and eats all of those now, and not just because it has to.

When the child was a child,
it awoke once in a strange bed,
and now does so again and again.
Many people, then, seemed beautiful,
and now only a few do, by sheer luck.

It had visualized a clear image of Paradise,
and now can at most guess,
could not conceive of nothingness,
and shudders today at the thought.

When the child was a child,
It played with enthusiasm,
and, now, has just as much excitement as then,
but only when it concerns its work.

When the child was a child,
It was enough for it to eat an apple, … bread,
And so it is even now.

When the child was a child,
Berries filled its hand as only berries do,
and do even now,
Fresh walnuts made its tongue raw,
and do even now,
it had, on every mountaintop,
the longing for a higher mountain yet,
and in every city,
the longing for an even greater city,
and that is still so,
It reached for cherries in topmost branches of trees
with an elation it still has today,
has a shyness in front of strangers,
and has that even now.
It awaited the first snow,
And waits that way even now.

When the child was a child,
It threw a stick like a lance against a tree,
And it quivers there still today.

Peter Handke

A concha

A minha casa é concha. Como os bichos
Segreguei-a de mim com paciência:
Fechada de marés, a sonhos e a lixos,
O horto e os muros só areia e ausência.

Minha casa sou eu e os meus caprichos.
O orgulho carregado de inocência
Se às vezes dá uma varanda, vence-a
O sal que os santos esboroou nos nichos.

E telhadosa de vidro, e escadarias
Frágeis, cobertas de hera, oh bronze falso!
Lareira aberta pelo vento, as salas frias.

A minha casa... Mas é outra a história:
Sou eu ao vento e à chuva, aqui descalço,
Sentado numa pedra de memória.

Vitorino Nemésio
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