quinta-feira, junho 30, 2005

Exercício anatómico

Descasco o tempo, como um fruto, espalho
os seus gomos sobre a mesa, separando os bagos
dos minutos e a polpa dos segundos, desfaço
a pele, até ficar com a sua massa colada
às mãos, olhando-a nessa diferença entre
o que é eterno e o que, sempiterno, se prolonga
na qualidade efémera da eternidade. Corto
os conceitos no prato do acaso, vendo o sumo
da duração misturar-se com o leite
do instante. Encho o copo da vida com
este líquido que me sobrou do que
acaba na fronteira do presente, e só a
memória recupera de entre o que emerge
no passado. No entanto, são fragmentos
onde encontro o que foi plenitude, e pensei
ter atingido o intemporal: um sorriso
que ficou preso ao espelho que os invernos
embaciaram; palavras que o ouvido roubou
a esses lábios que noutros lábios se perderam;
dedos pousados numa hesitação de caminho,
e logo fechados na palma da mão, até a noite
os levar. Disponho tudo isto nas prateleiras
de uma breve nostalgia; tento arrumar o que
permanece num canto em que a melancolia
se esconda; e o que fica é este pó de
sentimentos que me incomoda a alma,
obrigando-me a sacudi-lo com o pano
do esquecimento. Mas que fazer a esse brilho
que sobrou de uns olhos amados? A esse
momento em que a dúvida se dissipou,
num inesperado murmúrio, até a frase
retomar o seu curso? Ao remorso que
ficou do que não foi dito? A manhã, porém,
com a sua luz de ouro, limpar-me-á
destes restos de outrora, como se tudo
o que sou não viesse de cada um deles,
e de quem os habita, sombra, fantasma,
simples nome que repito, em voz baixa,
para que não se ouça a quem devo o poema.


Nuno Júdice

sábado, junho 25, 2005

Elegías de Gala

Fuente de vida
de noches sin mañanas
yo puedo llegar al surtidor
donde he visto súbitamente
la imagen tan amada
que llevaba grabada
en el fondo de mis entrañas.

Yo sé donde está
el pan de vida
tan blanco es
que cerrando los ojos
lo continuo a ver por transparencia
pan de vida
yo sé donde está el horno
en las llamas del cual
he visto prefigurada
la imagen tan amada
de Gala tan amada
horno que las totémicas guirnaldas
le sirven de adorno.

Yo sé donde está
en el fondo de la tierra
el bloque de mármol
donde está contenida
la imagen de Gala tan amada.
Cuatro elementos obsesionan mi Gala
aire, agua, fuego y tierra
que corresponden a mi Gala
que conocí antes de nacer.

¡Aire ,aire! es el que respiro
de noche y de día
veo sin cesar la imagen de mi Gala tan amada
el recuerdo de mi Gala tan amada
donde respiro sin cesar
de noche y de día
¡el aire, el aire!
de mi Gala tan amada.

En el fondo sin mañanas
el agua se vierte sin fin
en el surtido del jardín
donde he visto detalladamente
el rostro de mi Gala
tan poco amada.



Salvador Dalí

Aracne

O que me faz diferente
(além, está bem de ver, do exoesqueleto)
é talvez não ter alma interior;
uma coisa qualquer sobrevivente
que me faça durar,ainda que seja
na forma inferior do ectoplasma
ou no fátuo rumor da borboleta.
É breve a vida;mal sabemos
fiar um fio, e conceber a seda,
já se rasgou a areia na ampulheta;
a frágil obra que fizemos, fica
aberta ao vento, à chuva, ao descuidado
ofício da coruja e da serpente.
E como é escura a noite, só rasgada
pelo grito tenaz dos predadores;
ou, quando iluminada, é pelo fogo
que devasta os casulos e envenena
o jovem mel guardado nas colmeias.
À falta de melhor , antes prefiro
que ande lá fora, a pouca e perecível
alma que tenho;e se misture
tão bem a cada instante, que apeteça
vivê-lo eternamente;porque o tempo
é, como eu, um mero fabricante
de véus e teias que os humanos rasgam
sem sentir como nelas estão presos.

António Franco Alexandre, Aracne

sexta-feira, junho 24, 2005

No me des tregua

No me des tregua, no me perdones nunca.
Hostígame en la sangre,
que cada cosa cruel sea tú que vuelves.
¡No me dejes dormir, no me des paz!
Entonces ganaré mi reino,
naceré lentamente.
No me pierdas como una música fácil,
no seas caricia ni guante;
tálame como un sílex, desespérame.


Julio Cortazar

UNA CARTA DE AMOR

Todo lo que de vos quisiera
es tan poco en el fondo
porque en el fondo es todo,

como un perro que pasa, una colina,
esas cosas de nada, cotidianas,
espiga y cabellera y dos terrones,
el olor de tu cuerpo,
lo que decís de cualquier cosa,
conmigo o contra mía,

todo eso es tan poco,
yo lo quiero de vos porque te quiero.

Que mires más allá de mí,
que me ames con violenta prescindencia
del mañana, que el grito
de tu entrega se estrelle
en la cara de un jefe de oficina,

y que el placer que juntos inventamos
sea otro signo de la libertad.


Julio Cortazar

quinta-feira, junho 23, 2005

in "L'âme en bourgeon"

Eis-te meu pequeno amante
no grande leito da tua mamã,
posso beijar-te, abraçar-te,
ponderar teu belo futuro.

Bom dia minha pequena estátua de sangue,
de alegria e de carne crua,
meu pequeno duplo,
minha emoção.

Cécile Sauvage

terça-feira, junho 21, 2005

Canção

Tu eras neve.
Branca neve acariciada.
Lágrima e jasmim
no limiar da madrugada.
Tu eras água.
Água do mar se te beijava.
Alta torre, alma, navio,
adeus que não começa nem acaba.

Eras o fruto
nos meus dedos a tremer.
Podíamos cantar
ou voar, podíamos morrer.

Mas do nome
que maio decorou,
nem a cor
nem o gosto me ficou.


Eugénio de Andrade

Requiescat

Direi, pela noite, não ódio que tivesse
Nem detestar vida corpórea e ninhos de manhã,
Mas meu alto cansaço, a tristeza de lá
Onde se sente o aqui traído, a falsa entranha.
Direi -não "fora!" ao mundo que me cinge
(Outro onde o sei e como chegaria?),
Mas dos anos de ver, pensar durando
Retiro uma moeda de nada,
Fruto do meu suor, e pago o pão que se me deve,
Compro o silêncio que se me deve
Por ter cumprido a palavra,
Trabalhado nas palavras,
E por elas merecido a terra leve.

Vitorino Nemésio

segunda-feira, junho 20, 2005

Le dromadaire

Avec ses quatre dromadaires
Don Pedro d'Alfarrubeira
Courut le monde et l'admira.
Il fit ce que je voudrais faire
Si j'avais quatre dromadaires.

Apollinaire

domingo, junho 19, 2005

No te guardes nada

No te guardes nada, gasta,
derrocha alegrías, dichas,
truécalas en aire azul
por que vayan en volandas
por el cielo, hazlas de agua,
llena los cauces del mundo
con su espuma desatada,
entra por almas dormidas,
sacúdelas por las alas,
agita, como trigales
grandes campos de esperanzas,
rebosa, rebósate
de amar y de ser amado:
porque
ni este día, ni esta noche
se te acabará el amor.
Nos queda mucho.¿No sientes
inmensas huestes de besos, de resistencias, bandadas
de porvenir en las manos,
de arrebatos y de calmas?
¿Lo que me queda, invisible,
callado, guardado al fondo
de lo que tocan los ojos,
de lo que las manos palpan?
Y no está bajo la tierra,
mineral sordo, esperando
con alma pura de oro.
Ni es tampoco don ingrávido,
secreto fruto celeste,
suspendido
se alguna rama del aire.
No, no está lo que nos queda
ni en las minas, ni en los altos
huertos de estrellas maduras,
no son diamantes ni astros.
No existe, no tiene forma,
aún no sufre los penosos
contornos de lo creado.
!Darme, darte, darnos, darse!
No cerrar nunca las manos.
No se agotarán las dichas,
ni los besos, ni los años,
si no las cierras. ¿No sientes
la gran riqueza de dar?
La vida
nos la ganaremos siempre
entregándome, entregándote.

Pedro Salinas

sábado, junho 18, 2005

O lobo das estepes

Eu, lobo das estepes, corro, corro,
a neve cobre o mundo,
da bétula levanta voo o corvo,
mas nunca aparece uma lebre, nunca aparece um cervo.
E como eu amo os cervos!
Se acaso encontrasse algum,
prendia-o com garras e dentes:
é a coisa mais bela em que penso.
Com os sensíveis seria também sensível,
devorava-os todos de extremo a extremo,
bebia-lhes até ao fundo o sangue púrpura e espesso,
e solitariamente uivava pela noite dentro.
Contentava-me com uma lebre.
É tão doce à noite o sabor da sua carne quente.
Porventura foi-me negado tudo quanto possa, um pouco,
alegrar a vida, um pouco apenas?
A minha companheira, há muito que a não tenho,
o pêlo da minha cauda começa a ficar cor de cinza,
e só quando há bastante luz é que vejo.
Agora corro e sonho com cervos,
ouço o vento a soprar nas grandes noites de inverno,
e a minha alma dolorosa, entrego-a eu ao demónio.

Hermann Hesse

sexta-feira, junho 17, 2005

Memórias

As crianças mortas nunca abandonam a casa,
Circulam dentro dela, enrolam-se nas saias maternas
À hora em que as mães preparam as refeições e prestam atenção ao ferver da água
Como se estudassem as leis do vapor e do tempo.
Sempre presentes.
A casa adquire uma profundidade diferente
Como se uma chuva silenciosa começasse a cair
Em pleno Verão nos campos desertos
As crianças mortas não partem. Mantêm-se na casa,
Têm uma preferência pelo corredor condenado para os seus jogos,
E em cada dia crescem no nosso coração, a tal ponto
Que a dor, no peito, não nasce da sua falta
Mas sim da sua presença excessiva. E se acontece que as mulheres
Soltem um grito durante o sono
É que elas sentem novamente as dores do que foi o seu parto.

Yannis Ritsos

quinta-feira, junho 16, 2005

Uma educação sentimental,a resistência e a sua luz, lágrimas

Quem fui?Que sentido teve a minha presença
num tempo que este filme evoca
e já tão tristemente fora do tempo?
Não posso faze-lo agora, mas um dia
vou ter de aprofundar bem esta questão,
até um definitivo alívio...
(...)

Pier Paolo Pasolini

quarta-feira, junho 15, 2005

Di' tu se fedele

Di' tu se fedele
il flutto m'aspetta,
se molle di pianto
la donna diletta
dicendomi addio
tradì l'amor mio.
Con lacere vele
e l'alma in tempesta,
i solchi so franger
dell'onda funesta,
l'averno ed il cielo
irati sfidar.
Sollecita esplora,
divina gli eventi:
non possono i fulmini,
la rabbia de' venti,
la morte, l'amor
sviarmi dal mar
Sull'agile prora
che m'agita in grembo,
se scosso mi sveglio
ai fischi nel nembo,
ripeto fra i tuoni
le dolci canzoni
del tetto natio,
che i baci ricordan
dell'ultimo addio,
e tutte riaccendon
le forze del cor.
Su, dunque, risuoni
la tua profezia,
di ciò che può sorger
dal fato qual sia;
nell'anime nostre
non entra terror


Un Ballo in Maschera
Giuseppe Verdi

terça-feira, junho 14, 2005

balada del mal genio

Hay días en que siento una desgana
de mí, de ti, de todo lo que insiste en creerse
y me hallo solidariamente cretino
apto para que en mí vacilen los rencores
y nada me parezca un aceptable augurio.

Días en que abro el diario con el corazón en la boca
como si aguardara de veras que mi nombre
fuera a aparecer en los avisos fúnebres
seguido de la nómina de parientes y amigos
y de todo indócil personal a mis órdenes.

Hay días que ni siquiera son oscuros
días en que pierdo el rastro de mi pena
y resuelvo las palabras cruzadas
con una rabia hecha para otra ocasión
digamos, por ejemplo, para noches de insomnio.

Días en que uno sabe que hace mucho era bueno
bah tal vez no hace tanto que salía la luna
limpia como después de jabón perfumado
y aquello si era auténtica melancolía
y no este malsano, dulce aburrimiento.

Bueno, esta balada sólo es para avisarte
que en esos pocos días no me tomes en cuenta.

Mario Benedetti

segunda-feira, junho 13, 2005

O Copo De Água

Devia ser nos começos do verão,
os inumeráveis jacarandás
de Jerez de la Frontera estavam em flor.
Nos pátios da luxuosa vivenda
onde me haviam instalado
(que o Governo confiscara
a um riquíssimo produtor de vinhos da região
por fraude fiscal,
agora destinada a hospedar gente da cultura),
os repuxos erguiam
os seus irisados fios de água
para logo os deixar cair molemente
na face doutras águas cativas
em grandes taças de mármore,
onde já flutuavam uma ou outra flor de jacarandá.
Aquele rumor, a que se misturava às vezes
algum canto de ave, parecia-me então
a música do paraíso.
Durante aqueles dias, eu ficava por ali
sentado toda a manhã com os meus papéis
e um copo de água, que o caseiro me punha
em cima da mesa, um copo de cristal
com grinaldas de flores
gravadas na parte superior.
Poucas coisas haverá tão bonitas
como um copo de água fresca no verão,
mesmo quando o vidro não tem o brilho
e a transparência do cristal.
O caseiro, cuja voz vinda doutro pátio
me prendia a atenção com cantares andaluzes
muito ornamentados,
também colocava cuidadosamente à noite,
na minha mesa de cabeceira,
um copo de água em tudo semelhante
àquele de que falei.
E como lhe referisse a beleza, ele ofereceu-me,
ao partir, o que estava no meu quarto,
como lembrança da minha passagem pela casa.
É esse copo que, desde então
- e já lá vão tantos anos! -
tenho à cabeceira, e sempre com água fresca,
como se o verão e a luz dos jacarandás
durassem eternamente.

Eugénio de Andrade

quinta-feira, junho 09, 2005

After such pleasures

Esta noche, buscando tu boca en otra boca,
casi creyéndolo, porque así de ciego es este río
que me tira en mujer y me sumerge entre sus párpados,
qué tristeza nadar al fin hacia la orilla del sopor
sabiendo que el placer es ese esclavo innoble
que acepta las monedas falsas, las circula sonriendo.

Olvidada pureza, cómo quisiera rescatar
ese dolor de Buenos Aires, esa espera sin pausas
ni esperanza.
Solo en mi casa abierta sobre el puerto
otra vez empezar a quererte,
otra vez encontrarte en el café de la mañana
sin que tanta cosa irrenunciable
hubiera sucedido.
Y no tener que acordarme de este olvido que sube
para nada, para borrar del pizarrón tus muñequitos
y no dejarme más que una ventana sin estrellas.

Julio Cortázar

quarta-feira, junho 08, 2005

El viento y el alma

Con tal vehemencia el viento
viene del mar, que sus sones
elementales contagian
el silencio de la noche.

Solo en tu cama le escuchas
insistente en los cristales
tocar, llorando y llamando
como perdido sin nadie.

Mas no es él quien en desvelo
te tiene, sino otra fuerza
de que tu cuerpo es hoy cárcel,
fue viento libre, y recuerda.

Luis Cernuda

terça-feira, junho 07, 2005

Estar

Estar a la sombra
de la llaga en el aire.
No-estar-por-nadie-ni-por-nada.
Incógnito,
solamente
por ti.

Con todo lo que cabe dentro,
sin lenguaje
también.


Paul Celan

segunda-feira, junho 06, 2005

Sá de Miranda Carneiro

comigo me desavim

eu não sou eu nem sou o outro

sou posto em todo o perigo

sou qualquer coisa de intermédio

não posso viver comigo

pilar da ponte de tédio

não posso viver sem mim

que vai de mim para o Outro




Alexandre O'Neill

Lisbon Revisited

Nada me prende a nada.
Quero cinqüenta coisas ao mesmo tempo.
Anseio com uma angústia de fome de carne
O que não sei que seja -
Definidamente pelo indefinido...
Durmo irrequieto, e vivo num sonhar irrequieto
De quem dorme irrequieto, metade a sonhar.

Fecharam-me todas as portas abstratas e necessárias.
Correram cortinas de todas as hipóteses que eu poderia ver da rua.
Não há na travessa achada o número da porta que me deram.

Acordei para a mesma vida para que tinha adormecido.
Até os meus exércitos sonhados sofreram derrota.
Até os meus sonhos se sentiram falsos ao serem sonhados.
Até a vida só desejada me farta - até essa vida...

Compreendo a intervalos desconexos;
Escrevo por lapsos de cansaço;
E um tédio que é até do tédio arroja-me à praia.
Não sei que destino ou futuro compete à minha angústia sem leme;
Não sei que ilhas do sul impossível aguardam-me naufrago;
ou que palmares de literatura me darão ao menos um verso.

Não, não sei isto, nem outra coisa, nem coisa nenhuma...
E, no fundo do meu espírito, onde sonho o que sonhei,
Nos campos últimos da alma, onde memoro sem causa
(E o passado é uma névoa natural de lágrimas falsas),
Nas estradas e atalhos das florestas longínquas
Onde supus o meu ser,
Fogem desmantelados, últimos restos
Da ilusão final,
Os meus exércitos sonhados, derrotados sem ter sido,
As minhas cortes por existir, esfaceladas em Deus.

Outra vez te revejo,
Cidade da minha infância pavorosamente perdida...
Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui...

Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, e aqui voltei,
E aqui tornei a voltar, e a voltar.
E aqui de novo tornei a voltar?
Ou somos todos os Eu que estive aqui ou estiveram,
Uma série de contas-entes ligados por um fio-memória,
Uma série de sonhos de mim de alguém de fora de mim?

Outra vez te revejo,
Com o coração mais longínquo, a alma menos minha.

Outra vez te revejo - Lisboa e Tejo e tudo -,
Transeunte inútil de ti e de mim,
Estrangeiro aqui como em toda a parte,
Casual na vida como na alma,
Fantasma a errar em salas de recordações,
Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem
No castelo maldito de ter que viver...

Outra vez te revejo,
Sombra que passa através das sombras, e brilha
Um momento a uma luz fúnebre desconhecida,
E entra na noite como um rastro de barco se perde
Na água que deixa de se ouvir...

Outra vez te revejo,
Mas, ai, a mim não me revejo!
Partiu-se o espelho mágico em que me revia idêntico,
E em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim -
Um bocado de ti e de mim!...

Álvaro de Campos

sábado, junho 04, 2005

somewhere i never travelled

somewhere i never travelled,gladly beyond
any experience, your eyes have their silence:
in your most frail getures are things which enclose me,
or which i cannot touch because they are too near

your slightest look easily will unclose me
though i have closed myself as fingers,
you open always petel by petel myself as Spring opens
(touching skilfully, mysteriously) her first rose

or if you wish to be close me,i an
my life will shut very beautifully,suddenly,
as when the heart of this flower imagines
the snow carefully everywhere descending;

nothing which we are to preceive in this world equals
the power of your intense fragility:whose texture
compels me with the colour of its countries,
rendering death and forever with each breathing

(i do not know what it is about you that closes
and opens;only somethingin me understands
the voice of your eyes is deeper than all roses)
nobody,not even the rain,has such small hands


Cummings

sexta-feira, junho 03, 2005

No me des tregua

No me des tregua, no me perdones nunca.
Hostígame en la sangre,
que cada cosa cruel sea tú que vuelves.
¡No me dejes dormir, no me des paz!
Entonces ganaré mi reino,
naceré lentamente.
No me pierdas como una música fácil,
no seas caricia ni guante;
tálame como un sílex, desespérame


Julio Cortázar

Cinco últimos poemas para Cris

IV
Creo que no te quiero,
que solamente quiero la imposibilidad
tan obvia de quererte
como la mano izquierda
enamorada de ese guante
que vive en la derecha.


Julio Cortázar

quinta-feira, junho 02, 2005

IX

Give me back my rags
My rags of pure dreaming
Of silk smiling
Of striped foreboding
Of my lacy cloth
My rags of spotted hope
Of shot desire
Of chequered looks
Of my face's skin
Give me back my rags
Give me when I ask you nicely



Vasko Popa

quarta-feira, junho 01, 2005

Primeira elegia

Se eu gritar, quem poderá ouvir-me, nas hierarquias
dos Anjos? E, se até algum Anjo de súbito me levasse
para junto do seu coração: eu sucumbiria perante a sua
natureza mais potente. Pois o belo apenas é
o começo do terrível, que só a custo podemos suportar,
e se tanto o admiramos é porque ele, impassível, desdenha
destruir-nos. Todo o Anjo é terrível.
Por isso me contenho e engulo o apelo
deste soluço obscuro. Ai de nós, mas quem nos poderia
valer? Nem Anjos, nem homens,
e os argutos animais sabem já
que nós no mundo interpretado não estamos
confiantes nem à vontade. Resta-nos talvez
uma árvore na encosta que possamos rever
diariamente; resta-nos a rua de ontem
e a fidelidade continuada de um hábito,
que a nós se afeiçoou e em nós permaneceu.
Oh, e a noite, a noite, quando o vento, cheio do espaço do universo
nos devora o rosto -, por quem não permaneceria ela, a desejada,
suavemente enganadora, que com tanto esforço se ergue frente
ao coração isolado? Será ela para os amantes menos dura?
Ah, um como o outro eles se ocultam de sua própria sorte, apenas.
Acaso não o saibas já? Lança de teus braços o vazio
em direcção aos espaços que respiramos; talvez que as aves
num voo mais íntimo sintam o ar assim expandido.
Sim, na verdade as Primaveras precisavam de ti. Muitas estrelas
aguardavam que nelas reparasses. Para ti
se erguia uma vaga no findo passado; ou,
ao passares por uma janela aberta,
um violino entregava-se-te. E tudo isso era para ti uma missão.
Mas soubeste cumpri-la? Não te distraía a contínua
expectativa, como se tudo te anunciasse
a Amada? (Como a poderias acolher em ti,
se grandes e estranhos pensamentos te invadem
ou abandonam ou em ti permanecem ao longo da noite?)
Se porém estás saudoso, canta as Amantes, cujo
celebrado sentir todavia está longe de ser imortalizado.
Canta, e como tu as invejas quase, as que foram abandonadas, cujo amor
te parece maior, do que o daquelas que o viram apaziguado. Não cesses
de recomeçar esse sempre insuficiente louvor;
e pensa: o herói dura sempre; até a sua queda mais não foi
do que o simples pretexto para o seu derradeiro nascimento.
Mas as Amantes são acolhidas de novo na esvaída natureza,
pois as forças que tudo isto produzem
não existem duas vezes. Terás tu cantado de Gaspara Stampa
já suficientemente a lembrança, para que a jovem mulher
a quem o amado deixou, possa sentir
pelo sublime exemplo de uma tal Amante: Ah, ser como ela!
Não será tempo de estas dores antiquíssimas se tornarem
finalmente fecundas? E não será tempo de nós,
os que amamos, nos libertarmos de quem amamos, como trémulos vencedores?
De sermos como a flecha que, vencendo o arco, se solta, toda ímpeto,
passando a ser mais do que ela própria? Pois em nenhum lugar se permanece imóvel.

Vozes, vozes. Ouve-as, ó meu coração, como outrora apenas
os santos as ouviam: de tal modo que o apelo imenso
os erguia do solo; contudo permaneciam ajoelhados,
inconcebivelmente, a isso destentos:
ouvir: era assim todo o seu estar. Mas tu não poderias sequer em ti escutar
a voz de Deus. Ouve, porém, o sopro, ininterrupta mensagem
que a ti chega, modelado no silêncio.
E agora ouves o murmúrio dos jovens que morreram.
Na verdade, onde quer que entrasses, fosse
em igrejas de Roma ou de Nápoles, não era o destino deles que no silêncio te interpelava?
Ou, então, uma inscrição sublime te impressionava,
como a da lápide que há pouco viste em Santa Maria Formosa.
Que esperam todos eles de mim? tenho de serenamente retirar-lhes
o véu de injustiça que por vezes perturba
o puro movimento dessas almas.

É certo ser estranho não mais habitar a terra,
não mais agir conforme o que mal acabáramos de aprender,
não mais dar às rosas e a todas as outras coisas identicamente promissoras
o significado do humano futuro;
não mais ser o que se tinha sido
em infinitamente angustiadas mãos, e abandonar até
o próprio nome, como se fosse um brinquedo quebrado.
É estranho não mais desejos desejar. Estranho,
passar a ver sem conexão, disperso pelo espaço,
tudo o que antes tinha unidade. Estar morto
é laborioso e cheio de recomeços, até que aos poucos
nos apercebamos da eternidade. - Mas todos os vivos
cometem o erro de fazer distinções demasiado rígidas.
Os Anjos, diz-se, não sabem muitas vezes se se movem
por entre os vivos ou por entre os mortos. A eterna corrente
consigo arrasta incessantemente todas as idades,
através destes dois domínios, e o seu som a ambos se impõe.
Afinal, de nós já não precisam aqueles que tão cedo nos foram arrebatados,
suavemente se vai perdendo o gosto pelo que é terreno, tal como ao crescer
nos desprendemos da doçura do peito materno.
Mas nós, que de tão grandes mistérios necessitamos, nós para quem o luto é tão frequentemente a fonte de feliz amadurecimento -: poderíamos sem eles existir?
Ou será vã a lenda de que foi outrora, ao prantear-se Lino,
que a primeira música ousou penetrar na aridez do espanto?
Então, apenas quando esse jovem, quase um deus, de súbito
no espaço do terror para sempre se ocultava, o vazio
atingiu por fim a vibração que agora nos arrebata, nos consola, nos ajuda.

Rainer Maria Rilke
in As Elegias de Duíno
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