quarta-feira, novembro 02, 2005

Vale Abraão


O facto de Ema frequentar muito a varanda provocava bastantes precalços. Ao desfazer a curva da estrada, era forçoso levantar os olhos para a figura ali debruçada;e não havia motorista que ficasse indiferente. O choque da beleza ofoscava-o, isto sem querer exagerar. Perdiam por momentos o controlo e eram rudemente projectados conta a parede; outras vezes chocavam de frente com o carro que subia em sentido contrário e que não tinha maneira de se desviar, posto que o muro da propriedade de Ema era uma espécie de baluarte com quatro metros de altura.(...)
As coisas foram piorando e chegaram aos ouvidos das autoridades.
Uma manhã, pelas onze horas e pico, o Paulino cardeano teve a visita do presidente da Câmara em pessoa.Recebeu-o no salão de baixo, com móveis de jacarandá e um piano, verdadeiro monumento de respeitabilidade e sensatez algo vertiginosa que há nos salões da província, com dois espelhos dourados e cinzeiros em forma de folha lanceolada, com uma ninfa das águas como remate.Como é que uma tal deidade celebra as exéquias dum cigarro ou dum havano, não é fácil de explicar.Mas ela lá está, vestida de verde, com cabelos soltos e muito parecida às senhoras de Klimt. O presidente da Câmara, um homem doentio e de grandes olhos esbraseados, por causa da fadiga e do nervosismo constante, entrou imediatamente no assunto.
-A sua filha é um perigo para o trânsito nesta estrada.
-O quê?-disse Cardeano , estupefacto.
-Desculpe-me por as coisas assim, mas é um facto.
(...)
-Não sei o que a minha filha...-ia a começar a dizer o Cardeano.Mas o presidente interrompeu-o.
-Ela não tem culpa, é evidente.Mas aquela varanda é muito capaz de não estar bem colocada.Seria bom mudá-la de sítio.
-Mudar a varanda?- disse Cardeano.A sua pequena cabeça calva cobriu-se dum tom arroxeado que alarmou o presidente.
-Não digo isso. Não sei se me faço entender.
-Não percebo absolutamente nada.
(...)
-Não é nada de mal-disse o presidente, tomando o seu ar afável das sessões de vereação.(...)-O certo é que esta curva ja está a ser encarada como a curva da morte. Todos se despistam aqui e o motivo é essa maldita varanda.

Agustina Bessa-Luis
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