terça-feira, outubro 11, 2005

Poema à duração

(...)
O poema à duração é um poema de amor.
trata de um amor à primeira vista,
a que se seguem ainda numerosos olhares como esse primeiro.
E este amor
não tem a duração em nenhum acto, mas sim num antes e depois,
em que, mediante o outro sentido do tempo do acto de amar,
o antes foi também depois
e o depois também antes.
Já nos tinhamos unido
antes de nos termos unido, continuámos a unir-nos
depois de nos termos unido
e ficámos assim durante anos, deitados ao lado um do outro,
anca contra anca, respiração na respiração.
(...)

Contudo , a duração
não está ligada ao amor carnal.
Pode , do mesmo modo,
envolver-te no amor ao teu filho continuamente exercitado.
E também aqui não se trata, por exemplo, de traduzir em afagos,
carícias e beijos esse amor,
mas de o fazer apenas através de um rodeio pelas coisas secundárias,
pelo rágio caminho através de um terceiro!,
do serviço prestado por amor,
de modo que, servindo a criança,
não lhe perturbes o sossego:
a duração com o teu filho
aviventa-se talvez
nos momentos em que escurtas com paciência,
no momento em que tu,
como o mesmo gesto circunspecto
com que há uma década
penduravas no cabide
o sobretudo de capuz azul «de tamanho infantil»,
penduras agora o casaco de camurça castanho «de tamanho adulto»
num outro cabide e numa outra cidade,
a duração com o teu filho
pode avassalar-te
sempre que tu,fechado há horas no escritório,
com um trabalho que te parece útil,
procurando no silêncio o elemento que ainda te faltava
para que tudo fique certo,
ouves o ruído da porta que se abre,
sinal do regresso a casa,
que a ti,
o mais sensível dos sensíveis ao ruído,
mesmo que ao mesmo tempo estejas mergulhado no trabalho,
te soa aos ouvidos como a mais bela música.
E a duração mcom o teu descendente
sente-la talvez de forma mais intensa
quando o observas sem ele te poder ver:
o olhas no seu pecurso diário,
te adiantas no autocarro em que ele entrou,
para depois, na fila dos estranhos que vão à janela,
veres passar por ti
o rosto familiar,
ou simplesmente imaginas vê-lo ao longe
entre os outros, protegido pelos outros,
respeitado pelos outros,
na multidão que se comprime no metropolitano.

Para tais momentos da duração,
permite-se o poema usar um verbo especial:
eles constelam-te.
(...)


Peter Handke

6 Comments:

Blogger I said...

Este poema é dos mais belos que alguma vez li. Coloco-o no ASAS para celebrar o aniversário do meu filho Zé

11 outubro, 2005  
Blogger Alberto Oliveira said...

...Constelam-me
cercam-me e respiram-me;
povoam-me os sonhos de acção
-embora inerte bem os vejo,
que não me sentindo,logo os sinto!,
(uma houve que me deixou um beijo
e outra me brindou com absinto).
São tempos de curta duração.

Legivel.

(Sem dúvida!Um Peter Handke fantástico. Parabéns ao teu filho Zé!)

11 outubro, 2005  
Blogger Morfeu said...

Muito bonito, apenas a relatividade de tudo "duração". Parabéns ao Filho e à sua Mãe.
Obrigado pela visita.

11 outubro, 2005  
Blogger mfc said...

Parabéns ao teu filhote e parabéns pela escolha do poema.
Lindíssimo...

11 outubro, 2005  
Blogger Pêndulo said...

Parabéns aos dois. Só "conheço" um. Tenho a certeza que a sua obra é igualmente merecedora de elogio mas é a sua obra.

12 outubro, 2005  
Blogger I said...

Amigos, obrigada pelas vossas palavras neste dia tão especial para mim.

12 outubro, 2005  

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