sexta-feira, maio 27, 2005

Ao lavar dos dentes

A meio da tarde não sei porquê quando mais cadeiras se arrastam nos ladrilhos
e há mais pessoas no pequeno café isolado na vizinhança do mar
e eu a bem dizer ja' não sei que fazer das minhas duas mãos
e dou graças a deus por serem não mais que duas porque senão
é que não saberia mesmo o que fazer das mais ou menos a meio da tarde quando
a dois passos já há um centro
de sombra e
há a minha pena de que haja vento e haja muitos dias à sombra
talvez por me faltar já a segurança do sol pouco antes imóvel
pairando no alto sobre a cal calma das casas sobre as folhas
mais largas dos plátanos
reúno os papéis dispersos na mesa pago os cafés diversos que fui tomando
e dirijo-me com um profundo encolher dos ombros apressadamente para casa
A penumbra interior da casa o facto de a essa hora não haver ninguém em casa
a convicção de que o sol já deve ter dado a volta a uma sombra redonda
rodeará a mesa junto à janela onde costumo escrever
a incidência muito particular da luz a meio da tarde eis aí outros
tantos factores susceptíveis de explicar pelo menos em parte
ou pelo menos na medida em que uma coisa se pode explicar
que eu caminhe para casa e pense que me devo sentir então bem em casa
Gosto de entrar e de mal entrar logo começar a lavar os dentes
e de os lavar como se ao lavá-los eu lavasse mais do que os dentes
ou fizesse outra coisa que não lavá-los pensando talvez numa coisa
qualquer que não existirá não só para além do espelho que tenho na frente
como nem sequer na vida que outrora também tinha quase toda na frente
e agora se perde quase toda nas minhas costas como coisa que nunca vi
ou não é visível no espelho ou pelo menos não vejo no espelho
porque a verdade é que nem mesmo vejo o espelho e só daria bem pelo espelho
no momento em que o tirassem e fosse tarde demais para eu dar bem por ele
As coisas em que penso não existirão muitas vezes talvez a não ser
no meu pensamento ou então o meu pensamento modifica-as dá-lhes possivelmente
uma forma diferente da que têm ou terão na realidade como por exemplo
aquela mulher que há tanto tempo amei que nem mesmo sei bem se a amei
e que a noite passada enquanto eu dormia e vivia essa vida intermédia dos
sonhos
emergiu de repente sem mais nem menos como uma mulher irresistível para mim
para mais manietado pelo sono da superfície aquática do sonho
e sobressaiu entre as demais coisas porventura mais ou menos sonhadas
e deixou uma esteira indelével e nítida na minha memória como um
apelo cavo e prolongado mesmo depois de eu ter acordado esteira só dispersa a
mela manha
quando já outras pessoas e outros apelos quase por completo ocupavam
o território movimentado e confuso como uma feira da minha vida
da única vida que vivo e não é mais que estas coisas que faço
ao longo do dia nos campos no café ou principalmente aqui em casa
onde agora lavo os dentes como se nunca antes tivesse lavado os dentes
Lavo os dentes e descubro imensas coisas enquanto os lavo e decerto
lavaria muitas vezes os dentes ao dia se antecipadamente soubesse que
descobriria
tantos coisas como agora descubro e não são os dentes nem as gengivas
nem qualquer destas coisas das quais aliás falo só por falar
através de palavras que deito para trás das costas como a vida que vivi
e se perderão para mim exactamente como essa vida palavras que nem mesmo
conseguirei
ver no espelho onde aliás nada vejo a não ser as gengivas e os dentes
e a boca aberta de um homem que lava contente os dentes
ou pelo menos os lava como uma forma de estar à tarde sozinho em casa
e se sente bem sozinho e gosta moderadamente de estar em casa
pelo menos porque assim não está no café onde a essa hora
há mais pessoas e há o ruído de muitas cadeiras e onde se então estivesse
O mais certo seria sentir o desejo de se levantar e ir para casa
talvez porque já não sabe o que há-de fazer das mãos
ou porque o sol deu a volta à casa e deixou na sombra e no silêncio da tarde
a mesa redonda junto à janela onde costuma escrever
como se porventura escrever fosse mais alguma coisa do que escrever
ou porque pode lavar os dentes com a convicção estritamente suficiente
para lavar os dentes num gesto curto do braço curvo
em casa à tarde sozinho com uma tarde não sabe bem porquê
um pouco mais lá fora nos campos que ali dentro de casa
com a maior parte da vida já atrás das costas
com um certo número de palavras como a vida deitadas para trás das costas
e deitar palavras para trás das costas fosse alguma coisa como semear
meter em andamento através do campo lavrado a mão na serapilheira
dependurada do ombro esquerdo tirar ritmadamente um punhado de semente
e espalhar a semente ao vento nos sulcos antes abertos pela charrua
como se deitar palavras para trás das costas que é afinal o gesto de quem
escreve
fosse pelo menos lavar os dentes. Não queiram saber quem sou
ou se porventura alguém por curiosidade ou forma de passar o tempo
quiser alguma vez saber quem sou que veja como lavo os dentes
e que estou tanto nessa lavagem dos dentes como toda a pessoa que lava os dentes
sozinha em casa a uma certa hora da tarde na casa em sombra

Ruy Belo
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